14 de ago. de 2009

O Doping Genético.

Foto ilustrativa


O DNA da fraude

O doping genético ainda é incipiente, mas aprendizes de feiticeiro já estão tentando usá-lo para os Jogos de Pequim.

Liam Hoekstra tem apenas 21 meses de idade, mas sua história interessa muita gente no esporte. O bebê, adotado por uma família de classe média do Estado americano do Michigan, nasceu com uma mutação genética rara, que o torna naturalmente supermusculoso. “Aos 5 meses, ele fazia a cruz de ferro”, diz a mãe adotiva, Dana, referindo-se a um dificílimo exercício da prova de argolas, na ginástica artística, em que o ginasta ergue o corpo com os braços estendidos para o lado.

Liam é portador de uma mutação no gene da miostatina, envolvido na regulação da hipertrofia dos músculos. Felizmente, não parece ter efeitos colaterais. É um menino normal, a não ser pela massa muscular 40% maior que a das crianças de sua idade. Por que isso acontece? A miostatina é uma proteína que inibe o crescimento dos músculos. A pequena mutação no código genético de Liam retira parte de seu efeito. Assim, ele se torna musculoso sem fazer força. Até o século passado, essa mutação só era conhecida em animais, como bois e cães. Recentemente, surgiram dois casos em humanos, o de Liam e o de um menino alemão cuja identidade tem sido preservada. Nascer com uma mutação semelhante à de Liam é o sonho de quase todo atleta olímpico. Quem sabe nos Jogos Olímpicos de 2028 se possam testemunhar os efeitos da ausência da miostatina no desempenho de Liam. Até lá, é possível que se consiga, com os avanços da tecnologia de manipulação de genes, reproduzi-los artificialmente em atletas. O problema é que isso seria considerado doping – e do tipo mais temido atualmente: o doping genético.

200 genes que afetam o desempenho esportivo foram identificados


A medicina sempre contribuiu de forma involuntária para o doping no esporte. O uso de substâncias produzidas em laboratório para combater doenças foi desvirtuado para fins menos nobres. Na Segunda Guerra Mundial, soldados dos dois lados tomavam estimulantes chamados metanfetaminas para resistir ao estresse. Terminada a guerra, alguns atletas perceberam o potencial dessa droga. Delas, passaram às anfetaminas nos anos 60, aos esteróides nos anos 70 e a hormônios como eritropoietina (EPO) e hormônio do crescimento (GH) nos anos 90 – sem falar em outros métodos, como a transfusão do próprio sangue para aumentar o número de células vermelhas e, com isso, o transporte de oxigênio para o corpo.

A farmacologia evoluiu e passou-se a fabricar, em laboratório, proteínas e hormônios semelhantes aos produzidos naturalmente pelo corpo. O rim humano produz, por exemplo, um hormônio chamado eritropoietina. Conhecido como EPO, esse hormônio estimula a medula óssea a produzir as células vermelhas do sangue. Pouco mais de uma década atrás, os laboratórios começaram a produzir EPO artificial (chamado de “proteína recombinante”), um medicamento útil para prevenir anemia em pacientes com insuficiência renal. Trapaceiros do esporte aproveitaram a descoberta. Demorou até que se elaborasse um teste antidoping capaz de detectar EPO artificial. Em 2005, ao se examinar uma amostra (congelada) de 1999 da urina de Lance Armstrong, ciclista heptacampeão da Volta da França, foi detectada a EPO recombinante. Como não havia punição retroativa, Armstrong escapou incólume, mas sua farsa foi desmascarada. A todos esses avanços do doping as autoridades esportivas reagiram com lentidão, desenvolvendo exames antidoping sempre defasados em relação à burla. Agora, pela primeira vez, mocinhos e bandidos parecem estar empatados. A Agência Mundial Antidoping, criada em 1999 para coordenar os esforços de todos os esportes nessa área, já tem uma comissão dedicada a estudar o doping genético.

Lição de genética

Entender o doping genético exige recapitular as aulas de Biologia. O DNA presente em todas as células de nosso corpo é um par de moléculas trançadas em forma de dupla hélice. O DNA humano tem 23 “peças”, de diferentes tamanhos, chamadas cromossomos, formados por seqüências de milhões de pedaços, as “bases”. Há quatro tipos de base: citosina, guanina, adenina e timina, conhecidas pelas iniciais C, G, A e T. Se pudéssemos “ler” um cromossomo, veríamos uma seqüência de letrinhas, como GCCCTCACACTTCTACACCG... Há 3 bilhões de “letrinhas” nos 23 cromossomos, divididas em 30 mil blocos, conhecidos como genes. Cada gene tem uma tarefa. A seqüência de “letras” e a localização dos genes já são conhecidas. Resta compreender o que cada gene “quer dizer”. A cada mil “letras”, mais ou menos, encontra-se uma diferença entre um indivíduo e outro (por exemplo, GCCCA... em vez de GCCCT). São as mutações. Muitas dessas mutações parecem não ter efeito. Outras representam a diferença entre ter ou não uma doença – ou uma vantagem no desempenho físico. O trabalho dos cientistas, hoje, é rastrear os genes “candidatos” – aqueles que fazem a diferença. Aí entra o interesse para os atletas. Já foram identificados quase 200 genes que afetam o desempenho esportivo.
Desses, três ou quatro interessam mais para o doping genético.

Há muito de fantasia no uso do termo “doping genético”. Ainda há muitos obstáculos até que as terapias gênicas tornem-se eficientes no tratamento de doenças em seres humanos – e, por conseqüência, no doping esportivo. Os métodos para “implantar” um pedaço de DNA (ou seja, um gene) no corpo humano já são conhecidos. Esse material genético é primeiramente colocado em um “veículo”, normalmente um vírus modificado, e posteriormente injetado na região do corpo onde se quer que ele atue (leia o artigo). Mas ainda é difícil produzir grandes quantidades de vírus contendo o gene de interesse, tornando possível produzir o efeito desejado no corpo humano. Isso não impediu o aparecimento de charlatões anunciando maravilhas no mercado negro. Neste ano, o alemão Thomas Springstein, técnico de atletismo e marido da ex-velocista olímpica Grit Breuer, foi detido tentando comprar material supostamente usado em terapia gênica para fins de doping. Um documentário da TV alemã, exibido no mês passado, mostrou “terapia gênica” sendo vendida para atletas em um hospital chinês.

O MYO-029, um anticorpo artificial em teste, é considerado
o “doping do futuro” no submundo do esporte

Assim como seus predecessores na história da trapaça, o doping genético surgiu da louvável busca pela cura de doenças. O mapeamento e o seqüenciamento do genoma do homem e de outras espécies abriram novas perspectivas para a ciência. Constantemente se anuncia a descoberta de um gene envolvido nessa ou naquela doença (ainda que, na verdade, quase sempre elas sejam resultados da combinação de mais de um gene). No estágio atual das pesquisas, sabe-se apenas que alguns genes são mais “promissores” que outros. É o caso do gene responsável pela produção da miostatina – a substância que mais excita atualmente o submundo do doping.

Recentemente, foi desenvolvido em laboratório um composto chamado MYO-029, um anticorpo que bloqueia a ação da miostatina no corpo. Embora esse não seja exatamente um exemplo de terapia gênica (o MYO-029 atua na proteína, e não no gene que produz a proteína), sua aplicação na corrente sanguínea poderia resultar no crescimento dos músculos. O MYO-029 está em fase experimental com humanos. Em camundongos, o uso do anticorpo parece ser eficaz. “Mesmo que em fase de teste em humanos, caso o MYO-029 caia no mercado negro, seu uso vai se propagar no mundo do esporte”, diz Rodrigo Gonçalves Dias, pesquisador do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.

Embora os resultados não tenham sido excelentes em humanos portadores de problemas musculares, o uso de drogas semelhantes ao MYO-029 dá esperança para o tratamento da distrofia muscular. Será preciso esperar, porém, alguns anos até que os testes sejam concluídos e um medicamento eficaz chegue às farmácias. Paralelamente, já existem métodos para bloquear o efeito da miostatina alterando o funcionamento do gene. A terapia gênica que bloqueia o gene da miostatina ainda não foi testada em humanos. Mas bastou surgir a informação da existência do anticorpo para a discussão começar nos fóruns de fisiculturismo, meio conhecido pelo uso maciço de esteróides anabolizantes.

Seja o MYO-029, seja outra substância, os especialistas concordam que o doping genético é praticamente inevitável. Rodrigo Gonçalves Dias diz que, em breve, será possível elaborar um mapa dos potenciais genes que controlam cada sistema fisiológico do organismo. “Em aproximadamente dez anos, quando nossos filhos forem ao cardiologista, eles poderão ser ‘genotipados’ e, dependendo das mutações encontradas, classificados com maior ou menor risco para determinadas doenças. Isso possibilitaria iniciar um tratamento preventivo com anos de antecedência.” Isso também permitirá a criação de um “passaporte” com as informações genéticas de cada atleta. Essa análise, baseada no que os especialistas chamam de “padrão de expressão gênica” do indivíduo, permite acompanhar o atleta por toda a carreira esportiva, detectando eventuais alterações estranhas na velocidade de funcionamento dos genes. “A Agência Mundial Antidoping está trabalhando duro nisso”, diz o americano Theodore Friedmann, professor da Universidade da Califórnia, em San Diego, e uma das maiores autoridades mundiais em terapia gênica (leia a entrevista). Ao mesmo tempo que pesquisa a cura de doenças pela manipulação genética, Friedmann, de 73 anos, colabora com as autoridades esportivas para elaborar um método de detecção do doping genético antes que este se dissemine. Esse tipo de colaboração, que faltou no passado, pode salvar as Olimpíadas de muitos escândalos no futuro.

FONTE: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI9708-15294,00-O+DNA+DA+FRAUDE.html

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